O alcoolismo feminino carrega uma complexidade distinta da masculina.
Enquanto o homem, muitas vezes, bebe para se afirmar, a mulher frequentemente bebe para se apagar — apagar a culpa, o vazio, a sobrecarga e a solidão.

Do ponto de vista psicodinâmico, o abuso de álcool na mulher está profundamente entrelaçado a conflitos de identidade, valor pessoal e história emocional.
Muitas mulheres vivenciam o álcool como um objeto transicional — algo que oferece, mesmo que por instantes, a ilusão de acolhimento, proteção e contenção emocional.

Por trás do uso, frequentemente existe um movimento regressivo: uma tentativa inconsciente de retornar ao colo materno, de aliviar o desamparo psíquico que a realidade adulta impõe com suas exigências de perfeição, cuidado e força constante.

O ato de beber também pode ser a expressão velada de raiva reprimida, impulsos autodestrutivos ou agressividade não elaborada — como se, ao se intoxicar, a mulher se punisse por não corresponder aos ideais internos que carrega: ser boa mãe, boa filha, boa profissional, boa esposa.

O peso invisível dos papéis femininos

Em mulheres que acumulam múltiplas funções — mães, profissionais, cuidadoras — o álcool surge, muitas vezes, como refúgio emocional. Um momento solitário de esquecimento, uma anestesia para o excesso de responsabilidade.

Essa relação com a bebida costuma vir acompanhada de:

Transtornos ansiosos e depressivos mascarados por sorrisos sociais;

Culpa intensa após episódios de embriaguez (“falhei como mãe”, “não consigo parar”);

Vergonha crônica e autoacusação;

Ambivalência entre o desejo de parar e a necessidade de continuar para suportar o cotidiano;

Estratégias inconscientes de negação: “é só um vinho”, “um merecido descanso”, “uma forma de relaxar”.

Essa ambivalência alimenta um ciclo doloroso: quanto mais culpa e vergonha, maior a necessidade de anestesiar.

Corpo vulnerável, alma fragilizada

O organismo feminino responde de forma mais intensa ao álcool.
Isso se deve à menor quantidade de água corporal e à menor atividade da enzima álcool desidrogenase (ADH), o que acelera os efeitos tóxicos mesmo em pequenas quantidades.

Entre os principais riscos físicos estão:

Hepatopatia alcoólica, cardiomiopatia, neuropatia periférica;

Alterações hormonais, infertilidade, amenorreia e osteoporose precoce;

Danos cerebrais mais rápidos e acentuados — especialmente em áreas de julgamento, atenção e memória.

Além disso, o uso de álcool está estatisticamente ligado a maior vulnerabilidade a situações de violência doméstica, abuso sexual e acidentes.

A dor por trás do copo

Na maioria dos casos, o padrão de consumo se instala de forma silenciosa.
Começa com o vinho no fim do expediente, o brinde ocasional… e aos poucos se transforma em necessidade diária.

É um padrão solitário e domiciliar, diferente do consumo masculino que tende a ser mais público.
Muitas mulheres com histórico de trauma emocional, abuso sexual, relacionamentos abusivos ou isolamento afetivo desenvolvem o uso do álcool como uma forma de sobreviver emocionalmente.

O alcoolismo feminino raramente é apenas sobre o álcool.
É sobre uma dor que não encontrou palavras, um cansaço que não foi acolhido, e um amor-próprio que foi silenciado pela culpa.

Um cuidado que reconstrói

O tratamento não deve se restringir à abstinência.
É preciso restaurar o vínculo com o corpo, com os afetos e com a subjetividade.
A mulher precisa recuperar o direito de sentir sem anestesiar.

Mais do que retirar a substância, o cuidado precisa oferecer escuta, elaboração e possibilidade de reexistência com menos culpa e mais liberdade emocional.

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